por João Alexandre Peschanski
Em torno de uma cruz, Paoussi Dansi Zoulon dança. Seus gestos, frenéticos, são a luta pelo controle de seu corpo. Debate-se. Pula. Grita. A fogueira, a um metro, ilumina seu rosto. Percussões, em ritmo alucinante. No chão, as trêmulas sombras multiplicam o desvario mágico de Zoulon. De repente, a silhueta se imobiliza.
Não fala mais o homem, mas Papa Gede, o espírito da morte e ressurreição.
As dezenas de camponeses que assistem à metamorfose, em Belle Fontaine, no Oeste do Haiti, tiram de seus bolsos, casacos e sacolas, uma oferenda. Um ovo. Esperam assim alcançar paz e serenidade. Colocam-nos aos pés de Papa Gede. O corpo, até então parado, ao lado das chamas, se mexe. Lentamente. Cuidadosamente. Fala. E todos ouvem.
Belle Fontaine é uma das regiões mais pobres do Haiti. Sua população camponesa não consegue plantar, pois falta chuva. A estiagem já dura dez meses. Os rios secaram. O governo, por meio do Ministério da Agricultura, promete investir na captação e conservação de água. O anúncio foi noticiado pelo jornal haitiano Le Nouvelliste, em outubro de 2004. Até agora, nenhum funcionário foi deslocado para a região.
“Bondye me envia”. É o Deus do vodu, principal religião haitiana. Pergunta: “O que têm feito de seus mortos? Abandonaram-nos?”Os voduístas devem honrar, sempre, seus antepassados. Pensar neles. Senão, eles voltam para o mundo dos vivos e podem ser perigosos, gerando doenças e tragédias.
“Lembrem-se que os espíritos espreitam. Lembrem-se de Legba. Lembrem-se de Lamour Dérance”. Os personagens evocados são, respectivamente, o espírito da noite, considerado o guardião dos mundos, fonte de equilíbrio para os vivos; e um dos heróis da luta pela independência do Haiti, conquistada dos franceses em 1804.
Conhecimiento
Os sèvitê, como são conhecidos os adeptos do vodu, ouvem de Papa Gede a história dos marronages, as revoltas de escravos durante o período colonial. Eram lideradas por Dérance. “Lembrem-se dos feitos de nossos antepassados. Tinham o conhecimento. Da vida, dos invisíveis e faziam o avon (chamado dos espíritos). Estes vinham, pois a luta era boa, a luta era justa. Os invisíveis vieram e deram a vitória. Vieram felizes, vieram mal e bem. Veio até Agw”, conta Papa Gede, referindo-se ao senhor dos mares.
Como 80% da população haitiana, os camponeses de Belle Fontaine são analfabetos. O único contato que têm com a história de seu país é pelas cerimônias vodus. Nelas, o relato dos acontecimentos do passado se mistura com a crença, pois, de acordo com a religião, tudo o que ocorre no mundo dos vivos é controlado e determinado pelos espíritos. Assim, Dérance ultrapassa sua posição de houngan (homem, em crioulo) e se confunde com os espíritos.
Nos marronages, os escravos que fugiam das grandes fazendas organizavam comunidades autônomas. Plantavam o que comiam. Viviam de acordo com as crenças que traziam da África, onde nasce o vodu. Aqueles escravos, organizados, foram a base da luta que expulsou os colonizadores franceses do Haiti.
O ritual do Sèvis
O vodu, seguido pela maioria dos 7,66 milhões de haitianos, era proibido até 1993. Diziam as autoridades que a religião era violenta, pois se fundamentava no sacrifício de animais, e pregava o fanatismo, estimulando a criação de seitas.
“Na verdade, a religião é um meio para pensar e entender a liberdade. Também desafia todo o conhecimento que vem do estrangeiro. O vodu se fundamenta na cura. Com ervas e a ajuda dos espíritos, podemos curar nossos males, e não precisamos dos remédios que vêm de fora. Não precisamos da cultura que vem de fora”, afirmou o líder religioso Zoulon, antes de ser possuído por Papa Gede.
Na cerimônia, em Belle Fontaine, os houngan e as mambo (mulheres) se levantam, após a fala inicial do espírito. Preparam um sèvis, rito característico do vodu. Recomeçam os tambores. Delirantes. Os camponeses dançam, gesticulam, pulam. No meio da cena, Papa Gede ri. Os corpos, pouco a pouco, seguem a metamorfose de Zoulon. Deixam ser das pessoas para ser dos espíritos.
Um dos camponeses, agora espírito, pega um cabrito. Nos sèvis, faz-se o sacrifício de um animal, como símbolo da libertação da experiência da vida. É uma oferenda para os espíritos, cansados de governar o universo, para que se revigorem. Um jovem passa por um lave tet (quando alguém é possuído pela primeira vez). Deixa-se levar pelas percussões. Em um altar, de madeira e palha, Papa Gede sacrifica o animal. Minutos depois, enquanto se dissipa a noite, Zoulon volta a si. Não se lembra do que aconteceu.
http://www.voltairenet.org/article124355.html